domingo, 26 de novembro de 2017

Dia dos mortos

Hoje é dia de contrição, de falar baixo, de pisar leve, de dizer pouco. Dia de acender uma vela em memória, porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos. Hoje é dia de celebrar a memória dos meus mortos.
A primeira morte que senti foi a de Dindinha. Dindinha era irmã de vovó. Na infância, era ela quem lavava os meus pés com água morna, numa bacia esmaltada, todos os dias, antes d'eu deitar. Depois, cantava e fazia cafuné até eu dormir. Quando ela morreu foi muito triste. Minha avó não andava devido a vários derrames e foi preciso levar o caixão dentro do quarto para ela se despedir da irmã. Eu devia ter uns nove anos de idade, mas a cena ficou pra sempre gravada em mim.
Anos depois, foi a vez da vovó partir. Mas antes dela ir, eu a flagrei, muitas vezes, chorando. Perguntava por que e ela com sua fala enrolada, a boca torta pelos derrames tantas vezes repetidos, falava entre lágrimas: "tenho medo de morrer e ocê deixar o Izé sozinho". Não deixei. O receio dela pesava como chumbo em meu coração. Fiquei com vovô até a sua morte, embora meu desejo fosse morar em Belo Horizonte com minha mãe e irmãos que já tinham vindo em busca de melhores condições de vida. Numa noite, eu já dormindo em casa de mamãe, porque sempre vivi dividida entre as duas casas, me chamaram dizendo que vovó estava muito mal. Não lembro quem me levou. Quando cheguei, a casa estava cheia de gente. Vovô sentado na beira da cama, segurando uma vela na mão da vovó. Ela tinha os olhos abertos e olhou para o vovô e pra mim, várias vezes, como que se despedindo. Vovô chorava muito. Ainda chorou por semanas. Eu não sabia o que fazer para consolá-lo, e para distrai-lo, pedi que desenhasse pra mim. Ele fez muitos desenhos, não sei que fim levaram, uma pena não ter guardado.
Depois foi o Jardel, meu sobrinho de quatro anos. Morreu atropelado quando brincava numa rua perto da casa da mamãe. Uma tristeza terrível. Como assim uma criança morrer? Minha irmã foi em Baldim me avisar. Lembro da gente vindo de fusquinha do Culita, que foi nos buscar. O caminho estava deslumbrante com os ipês amarelos floridos, era final de agosto. Nunca esqueci aquela imagem.
Quando eu tinha quatorze anos foi vovô quem partiu. Ele, que assava pra mim, pão da padaria velha com margarina, na chapa do fogão à lenha. Que me levava e buscava na escola. Lembro que dei as suas varas de pescar para o meu amigo Eduardo. As roupas doamos para o asilo.
Papai foi alguns anos depois. O coração enorme por conta da doença de chagas parou de bater. Ele gostava tanto de viver. Lembro dele tentando aprender a tocar cavaquinho para acompanhar a folia de reis. Reformando caixas de madeira para levar legumes e frutas para vender na CEASA. De novo, minha irmã foi me chamar. Dessa vez, eu já morava em Belo Horizonte e alugamos uma Kombi que fez o caminho de volta. Era dezembro, chovia.
Mamãe se foi há 7 anos. É a que mais sinto falta. Quantas vezes, sentadas na mesa da cozinha, em Baldim, ouvia, contrariada, suas 'carteiradas' desconstruindo o amor romântico, uma bobagem, segundo ela. Eu, sofrendo por amor, ouvia ela dizer: "Cê gosta nada, minha filha! Isso é cisma! Você cismou com essa pessoa, só isso! Daqui a pouco passa." E passava. Às vezes demorava um pouco, mas sempre passava. Mamãe faz muita falta. Mamãe que não criou nenhuma de suas filhas para o casamento. "Você precisa estudar, trabalhar, ter sua casa, seu carro, suas coisas, não depender de ninguém", incansável, ela repetia, repetia... Como gostaria de ouvir suas histórias, novamente. Histórias contadas, recontadas e trescontadas, que às vezes, nos deixavam impacientes. Quanta sabedoria, quanto aprendizado.
Hoje, vou acender uma vela para reverenciar a memória dos meus mortos. Como mamãe fazia para o nosso anjo da guarda, para abertura dos nossos caminhos. Hoje, vou falar baixo, pisar leve, dizer pouco. Porque para lembrar e sermos lembrados é que fomos feitos.

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