segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O rap salva!

Hoje é dia de pegar o caminho de volta, enfrentar estrada de chão, poeira. Mas até que não é de todo ruim. Gosto de observar os personagens que sobem e descem do ônibus no trajeto Baldim/BH. Depois de 15 dias longe, o final de semana foi um bálsamo. Matei as saudades da janela azul de tramela, dos beija-flores e dos cachorros. Passei os dias lendo bell hooks [Ensinando a transgredir] e conversando com o menino sobre Pablo Vitar; ouvindo juntos, fado, Cartola, Bob Marley, Pink Floyd e nossa mais nova descoberta: Delartovi, um jovem rapper de Nova Lima, autor de "Tilelê", que tem participação do Djonga e é das letras mais geniais que já ouvi. Além de bell hooks [maravilhosa], me fizeram companhia, Lázaro Ramos [Na minha pele], "Eu sou favela"[uma coletânea de contos da Editora Nos], e o português, José Riço Direitinho, que não conhecia e por quem já estou caidinha de amores.
O Rap salva! A literatura salva!

Uma flor nasceu em mim

Deitei na cama ao lado do menino que ouvia Amália Rodrigues.
- "Que isso, ouvindo Fado? Tá com saudades de Lisboa, é?" 
-"Tava ouvindo, dia desses, na casa do meu pai."
- Coloque aí: "Alfama" com a Mayra Andrade e o Pedro Moutinho (https://www.youtube.com/watch?v=eadBZWgCtKc).
Ele colocou e ficamos quietinhos, escutando. 
Em seguida, ele colocou Cartola (https://www.youtube.com/watch?v=plOTKOJ32Os).
Lembrei do Agualusa: "A África nos salvou da melancolia portuguesa".
Como no conto "Esperança" da Clarice, me senti como a mãe quando o bichinho verde pousou em seu braço.
Também fiquei imóvel e foi como se uma flor tivesse nascido em mim.

Tupac

"Mãe, vou colocar os fones, tá?" Normalmente, quando o menino diz isso, estamos juntos no ônibus no caminho Baldim/BH ou em direção ao centro da capital e significa que ele está se desligando do mundo. Se eu quiser falar com ele, preciso cutucá-lo. Do contrário, falarei sozinha. Mas desta vez foi diferente. "Mãe, escuta esta música aqui" e me ofereceu um dos fones de ouvido. Rolava "All Eyez on me", do Tupac. Eu me ajeitei no ônibus lotado do move, de modo a continuarmos partilhando os fones. Quando terminou, pedi a ele que colocasse "Califórnia Love", uma das minhas preferidas. O sample da música é "Woman to Woman" do britânico, Joe Coker, um roqueiro branco influenciado pela "soul music". Isso eu não sabia, fui pesquisar depois. Naquele momento, no ônibus lotado, eu procurei me equilibrar de modo a não perder aquela horinha de descuido. Depois, já sentados no segundo ônibus, ele me contou sobre a treta entre Tupac e Notorious Big e a rivalidade entre a costa leste e a oeste americana. Falou de mil referências, todas desconhecidas pra mim. "Ah, mãe, é que nessa época você ouvia Milton Nascimento." Eu ri e completei: "É verdade, só ouvia Clube da Esquina." E fiquei ali, quietinha, ouvindo uma aula sobre a história do rap. Depois ele colocou "Jezebel", com um remix da Sade Adu. Aí, foi a minha vez de ensinar. Falei da nigeriana que fez tanto sucesso na década de 1980. "Jezebel" do Tupac fala da mãe, Afeni Shakur, que fez parte dos "Panteras Negras". A ativista escolheu o nome do filho em homenagem ao imperador inca, último líder indígena a ser capturado e morto pelos colonizadores espanhóis. Você pode, por uma questão estética, até não gostar de rap, mas olhe, o que os jovens aprendem nas letras é muito mais que muita aula de história consegue ensina

Terceira margem

Dia desses, uma amiga me disse que pensou que eu não daria conta de morar em Baldim, depois de tanto tempo fora. Conversamos sobre como, eu não só dei conta, mas também me fez muito bem. Já se passaram 3 anos desde que cheguei aqui. Ver o menino criando laços com o lugar do meu afeto me enche de alegria. Dia desses, ele foi com o tio e o pai ajudar a vó a buscar lenha. Quando voltou disse: "Puxa mãe, agora eu entendo quando você contava sobre a dificuldade que é buscar lenha." Eu ri e comentei: "E não íamos de caminhão como você foi. Íamos à pé." Às vezes, me acho meio doida. Gostar que o filho busque lenha no cerrado? E não é pela dificuldade que acho importante que ele viva essas experiências. Penso na necessidade de uma educação para/da sensibilidade, e buscar lenha é uma experiência de humanidade. Outro dia, o vi dando um abraço tão carinhoso na vó, que engoli o choro. Aquela mulher simples, que ainda cozinha no fogão à lenha e que faz quitandas 'pra fora'. Naquele abraço tinha tanto afeto que percebi o quanto ele valoriza aquela mulher. Gosto de ouvir os amigos e as amigas dele chamando no portão: "Ôôôô, Jão?!" Como na infância a Betânia me chamava na casa do vovô. Muitos de seus amigos são filhos de amigos meus. Gosto de vê-lo se aprontando para ir para a Quermesse no Asilo, para o rolê na Praça, para o aniversário surpresa na casa de uma amiga. Penso que, mais que um lugar geográfico, Baldim provoca um deslocamento subjetivo. Todos os dias alguém diz querer conhecer minha patriazinha. Eu sempre alerto: Deem um desconto. Baldim é minha terceira margem. Quando chego aqui, é como se entrasse na minha canoinha, de onde eu saio só para buscar o 'de comê' [físico e espiritual] no morro ressecado pela falta de chuvas, nos beija-flores disputando o bebedouro, nas perpétuas colorindo o quintal, na Ave-Maria na hora do Angelus, nas notas de utilidade pública e de falecimento que me chegam pelo alto-falante da igreja, no canto do coro nas missas de domingo, na voz da Dona Geralda que entra pela janela azul de tramela dessa casa velha. E assim, eu sigo "rio abaixo, rio a fora, rio a dentro", porque a terceira margem não se alcança, mas é ela que nos move a remar.

Salve, Carolina!

Hoje, se arrumando para ir à escola, o menino pegou no armário a única camisa social que ele tem, comprada numa daquelas lojas populares do baixo belô, para um aniversário de 15 anos, ano passado. A mesma que ele usou na formatura do ensino fundamental. É que hoje, a professora de literatura fará um café literário para xs alunxs apresentarem as obras lidas no bimestre e elxs deverão estar caracterizados como um dos personagens. Ele leu "Quarto de Despejo" e foi vestido como José Carlos, filho da Carolina. À princípio, reproduzindo os estereótipos com os quais somos bombardeados, cotidianamente, ele queria ir com uma camiseta furada. Conversamos. Carolina deixa claro, em todo o livro, o valor que a educação tinha pra ela. Faltava comida, mas não faltava o dinheiro da condução para os filhos irem para a escola. Ela, inclusive, começa o livro falando que era aniversário da filha, Vera Eunice, e que pretendia comprar um par de sapatos pra ela. Um filho de Carolina jamais iria para escola para uma apresentação de trabalho vestido de qualquer jeito. O menino refletiu, repensou, e escolheu a roupa que achou mais apropriada. Guardou o pacote de biscoito para o café literário na mochila e anotou no celular: "traduzido em 13 línguas, vendido em mais de 40 países" e saiu todo animado. Eu acredito nessas micro-revoluções cotidianas. É daqui, da minha vida ordinária de mulher do povo, mãe de filho, professora, que vou batalhando para mudar o mundo.
Salve, Carolina! 

Da palavra que instaura

Adélia Prado tem um conto que eu adoro: "Sem enfeite nenhum". Fala de uma mãe com pouquíssima escolaridade que achava estudo a coisa mais fina do mundo. Tão minha mãe... No conto a mãe ficava emocionada em volta dos filhos estudando e dava recomendações: "você põe muita força no lápis", "se eu tivesse tempo, ninguém na escola me passava", "falar você em vez de cê, é tão mais bonito"... E num dia qualquer, a mãe, num esforço enorme, falou de uma vez, vencendo a vergonha: "me dá seu lápis de cor." E foi desenhando e colorindo uma rosa geométrica, falando cortado, nervosa e emocionada por vencer a timidez e assumir o desejo. Era tanta satisfação no trato com o lápis que a narradora chega a ficar aflita. Minha mãe não foi alfabetizada. Só duas vezes a vi manejando caneta. A primeira para votar no filho, candidato à vereador; a segunda para votar no Lula, candidato à presidente. Eu cheguei a ler o método Paulo Freire para ensiná-la, mas ela não teve paciência. Tinha muita vergonha por não saber ler. Eu gostava de ler para ela. Li trechos de "Só as mães são felizes" da Luicinha Araújo, mãe do Cazuza e choramos juntas. Lembro de um dia, na varanda quando li "Poema esquisito" da Adélia e ela chorou. Mamãe não conheceu o pai, teve uma história difícil com a mãe e quando eu li os versos finais: Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia."
Ela não aguentou e caiu no choro. Acho que ela nunca ouviu um "ôôôôi fia", pois se casou ainda adolescente, aos 16 anos. Nem teve tempo de ser filha, virou logo esposa e mãe. Durante muito tempo, mamãe tinha receio do que líamos. Até que um dia, não sei se eu ou minha irmã, lemos um trecho do "Cartas da Prisão", do Frei Betto pra ele, que respirou aliviada: "Ah, é isso que você ficam lendo?" Dia desses, quando cheguei de BH, o menino tinha revirado minha caixeta de livros. "Mãe, tô lendo 3 livros ao mesmo tempo." Um era "Quarto de despejo" para a aula de literatura; outro, que não lembro o nome, era para uma peça de teatro que vão fazer na escola; e o terceiro, que ele já havia lido alguns contos era, segundo ele, de uma tal de "Margaret Atwood", que pegou na minha caixa. Quase tive um treco. É que ele descobriu o poder da palavra. Isso veio com as letras dos raps que anda ouvindo. Ontem, enquanto ele finalizava um poema que estava escrevendo, cobriu a cabeça com o capuz do casaco, segundo ele, "para as ideias não escaparem", e antes de se trancar no quarto, disse: "mãe, vou imergir num processo criativo", e fechou a porta. Só saiu de lá para me mostrar o poema pronto. Na hora de dormir, quando fui ao quarto dar boa noite, ele lia Carolina Maria De Jesus e no criado ao lado, dois livros que pegou na estante. Um era sobre Che Guevara e o outro, o romance da portuguesa Alexandra Lucas Coelho, "A noite roda". Eu me espantei, porque até outro dia, o celular não deixava ele fazer mais nada. "Que isso menino? Não estou te entendendo, resolveu ler agora?" "É que descobri que as ideias fluem melhor quando a gente lê." Paulo Freire diz que o analfabetismo é a pior exclusão. Alfabetizar, é segundo ele, conceder ao outro o direito à palavra. Para Freire, os oprimidos precisam tomar de volta a palavra que os opressores insistem em negar-lhes. Fico pensando como teria sido a vida de mamãe se ela tivesse sido alfabetizada. Ela, uma das mulheres mais inteligentes que já conheci. E fico numa alegria danada vendo o menino descobrindo o prazer do conhecimento, se encantando pela poder da palavra. Essa palavra que instaura, que suscita afetos. E sou obrigada a discordar de Adélia. O estudo é tão lindo quanto o sentimento. Bom dia!

Com que roupa eu vou?

No começo da madrugada teve muito barulho por conta de um carro com aqueles equipamentos potentes de som. Mas agora, a cidade é só silêncio. Quer dizer, os periquitos já fizeram uma algazarra danada no pé de jabuticaba e no pé de amora da casa do Seo Renato. Mas, consigo ouvir a seriema cantando lá no morro. O menino acordou sozinho para ir para a escola. Quase não precisa mais de mim. Falo quase, por que ainda tem necessidade de interlocução. Ontem, enquanto lia Carolina Maria de Jesus, do quarto ele me gritava.
- Mãe, ouve isso: 'O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.' Foda isso, né, mãe?
- Carolina é maravilhosa, meu filho.
- Olha isso, mãe: 'Entregou sua vida aos cuidados da vida'.
- Carolina é poeta, meu filho. Eu não te falei?
- As minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis.
- Sim, é o dedo na ferida. Como o rap, meu filho.
- Mãe, tenho que apresentar o livro caracterizado como um dos personagens. Acho que vou como José Carlos, filho dela. Pensei em ir com uma camiseta furada..."
- Filho, você acha que uma mulher que começa um livro falando que era aniversário da filha e que queria comprar um par de sapatos pra ela, que deixava de comprar comida, mas nunca faltava o dinheiro da condução para eles irem à escola. Você acha que ela deixaria o filho ir apresentar um trabalho escolar de qualquer jeito?"
-Tem razão mãe, vou com a minha melhor roupa.

Palavra que instaura

Ontem, o menino me mostrou um poema que escreveu. Eu pirei. Fazendo esforço para deixar a corujice de mãe de lado, meu faro de leitora diz que tem muita potência ali. Ele falava, entre outras coisas, da amizade entre Deus e a Morte, e de como existe uma negociação entre eles para escolher quem fica e quem vai. Temos conversado tanto sobre a palavra que instaura, que suscita afetos, que nos inspira a escrever. Ele, ouvindo os raps do Djonga, do ADL, Racionais;eu, lendo Paulo Freire, Carolina, Conceição. Ele tem descoberto que as palavras gostam de ser seduzidas e que há momentos que as conseguimos pegar, tal qual um peixe vivo com as mãos. Ontem foi um dia desses.

Domingo

Os acordes do violão acompanhando o coro da igreja disputavam com o burburinho que chegava do jogo no campo de futebol. Terminada a missa Dona Geralda subiu a rua reclamando do frio: "Ah, neim... essa friagem deixa a gente empesteada, não gosto de frio não." Foi com seu passo lento preparar o almoço. Várias vezes ela já me gritou da rua, entre a sua e a minha casa. "Ô Dalva, dá um pulinho aqui." Quando chegava lá, ela destampava as panelas extremamente areadas e dava um prato para me servir: "Enche esse prato direito, seu menino não vai comer também?" Quando meu tempo por aqui terminar e a janela for outra, "em meu país de memória e sentimento", bastará que eu feche os olhos e será novamente domingo.

Aprendendo a olhar

Sentados nas cadeiras recém-trocadas na rodoviária de BH, aguardávamos o horário para descermos para a plataforma do ônibus. Conversávamos sobre metáfora, sobre Clarice e sua barata. Atrás de nós um tiozinho, cabelos brancos, aparência lá pelos 70 anos, com o zoom aumentado do celular, lia uma notícia com o telefone bem próximo aos olhos. O menino comovido com a beleza da cena, disse: 
"- Que imagem poética, mãe! Queria tanto saber escrever para registrar esse momento. É muito bonito tudo isso."
Eu, como Diego do Galeano, emocionada, coloquei a mão em seu braço e disse:
"- Meu filho, você está aprendendo a olhar!"