terça-feira, 16 de maio de 2017

As voltas que o mundo dá

Quando cheguei em casa na sexta à noite, fui recebidas pelos cachorros. Scooby, enlouquecido com a minha chegada, pulava tanto que me arranhou os braços, . Fridinha, dengosa, veio pro colo. O menino só vi mais tarde, quando chegou do rolê. Veio pro meu quarto porque eu já estava deitada e fomos passar a semana a limpo. Contei da prova do concurso que não passei. Ele me consolou e deu força: "Agora é continuar estudando e insistindo, mãe! Uma hora dá certo". Falei de outra inscrição, dessa vez para o interior do Piauí. Ele disse que não era o desejo dele, mas que, 'se rolar', vai junto porque sabe que estou sempre buscando o melhor para nós. Depois, deitou do meu lado e me mostrou, no celular, as descobertas musicais. Falou também, de um certo cansaço em ser enxergado como "exótico" numa cidade de 7 mil habitantes, por conta do cabelo e do skate; e de ser enxergado como da "roça" pelos amigos da metrópole, que insistem em ensiná-lo a usar a manete do playstation, como se ele não soubesse. Falou das falas e das posturas racistas, cotidianas, que acontece na escola. Falou das conversas que tem tido com as amigas negras e de como tem insistido com elas sobre a necessidade de se posicionarem e não aceitarem racismo e preconceito travestido de "brincadeiras. Falou que quem decide se é ofensa ou não, é quem se sentiu ofendido. Eu ainda me surpreendo, diariamente, com a postura madura desse menino que não para de crescer e não é só fisicamente. Uma ternura imensa tomou conta de mim e quando o sono chegou, pedi a ele que ficasse deitado, ali, do meu lado, até eu dormir. Ele me abraçou, riu e disse: "Como o mundo da voltas, hein, mãe? Até outro dia eu queria dormir com você e você não deixava." Fiquei quietinha, vivendo aquela horinha de descuido e lembrando de tudo que passamos até chegar aqui. Ele, achando que eu já tinha dormido, saiu pé ante pé e fechou a porta do quarto.

Seo Zezinho

Eu não consigo ver os trabalhadores do MST e não lembrar do meu pai. Seo Zezinho morreu aos 62 anos, moço ainda, apesar de aparentar muito mais idade do que tinha por causa da pele curtida pelos anos trabalhados na enxada, embaixo de sol. Morreu sonhando com a reforma agrária e um pedacinho de chão que fosse seu. Trabalhou a vida inteira em terra dos outros. Um lavrador, como ele orgulhosamente se definia. Lembro que nos tempos de graduação, quando tinha que preencher o questionário sócio-econômico da Fundação Universitária Mendes Pimentel - FUMP para renovação da bolsa de manutenção para alunos carentes da UFMG, sempre me envergonhava na hora do preenchimento da profissão e da escolaridade dos meus pais. Ele sempre me explicava: "Não sou agricultor, não tenho terra. Sou lavrador!" Morreu sem conseguir se aposentar, apesar de usar marca-passo no coração. Ele tinha doença de Chagas, doença de pobre, como diz a Eliane Brum. No dia do seu enterro, foi vestido com a melhor camisa que tinha, já surrada, presente da minha irmã que trabalhava como caixa, numa loja de roupas no centro de BH. Lembro de um certo burburinho e o pedido que alguém fosse até a praça de Baldim, correndo, comprar um par de meias, para ele não ser enterrado descalço. Eu protestei: "Se ele viveu a vida toda sem meias, porque, diabos, justamente agora, vai precisar de uma?" Séo Zezinho, um trabalhador rural sem terra, 62 anos, foi enterrado com os pés nus, calcanhar rachado, mãos calejadas, como esse mar de gente que está hoje, em Curitiba, no Acampamento da Democracia.
Hoje, meu coração amanheceu amolecido como um figo na calda

Deus-dará

A leitura estava tão empolgante, que mesmo em pé, no ônibus do Move, me equilibrei segurando o livro de quase 600 páginas da Alexandra Lucas Coelho. "Deus-Dará" é uma aula de história do Brasil a cada página. Coincidentemente, ou melhor, confluentemente, como diria Mestre Nego Bispo, enquanto lia sobre o momento que o personagem Lucas distribuía comida aos usuários de crack na cracolândia carioca, o ônibus passava em frente a favela no bairro São Francisco. Quando me mudei para BH, em meados da décadas de 1980, essa favela não existia. Passando de ônibus, vi ela nascer e crescer ao longo dos anos. Os usuários que antes ficavam restritos a região do conjunto IAPI, hoje estão ao longo de toda a avenida Antônio Carlos; da região do viaduto São Francisco, à Lagoinha. O número cresceu exponencialmente nos últimos anos. Gosto da Alexandra porque ela nomeia todos os seus personagens: "Uma garota corcunda de tão magra, vestígios de verde fosforescente nas unhas, quase sufoca com o bolo: o nome dela é Zulmira. Um homem que parece sugado vomita o que acaba de comer: o nome dele é Laurinho. Há quem traga garrafas para encher de suco: Paco, Gerson." Me lembrou Gabina e sua tese sobre as usuárias do Pelourinho, em Salvador: Lucy, Gal... As usuárias tinham nome, histórias, desejos. Alexandra cita os pixos no centro do Rio: "Copa pra quem?" "[Porto] Maravilha pra quem"?. Olho pela janela do ônibus e vejo os pixos na avenida Antônio Carlos: "Sistema cão", "Morte ao sistema". Confluências das metrópoles e suas mazelas. Próximo ao hospital Belo Horizonte alguns barracos vão sendo erguidos. No começo da semana era apenas um, hoje já são três. Em "Deus-dará", Tristão e Inês sobem o Morro da Conceição e lá de cima apreciam a Baía da Guanabara: "Está cheia de lixo, esgoto, cadáveres. Mas à distância é uma beleza..." No livro, a portuguesa questiona Tristão: "A abolição foi quando?" "Só em 1888". Então a todo momento cruzamos com bisnetos de escravos." "Pensei que seria mais misturado" (...) Mas ao mesmo tempo há algo de feudal, as babás, os porteiros, tantos empregados. Não imaginei que daria para ver tanto a herança colonial." Dá sim, Inês! No centro de BH também me assusto com a quantidade de vendedores ambulantes. Contei 30 na calçada de meio quarteirão. Nas ruas São Paulo, Curitiba, Guarani, está dificílimo andar. É visível o empobrecimento da população.
Lembrei da capitã Pedrina e seu canto do 13 de maio:
"Cem anos de abolição
Não pude comemorar
Cadê a libertação
Que a Lei Áurea ficou de me dar?"
E pensar que ainda vai pior muito.

Dia das mães

Que dia bonito o de hoje. Acordei com vontade de me esconder num abraço de mãe. Busquei uma foto antiga abraçando a minha, o menino no colo. Mas não foi suficiente. O desejo era tanto, que o Universo conspirou e Dona Geralda me chamou no portão. Veio com seu passo lento, joelho inchado, me cumprimentar pelo dia das mães. Contei pra ela que tudo que queria era um abraço como aquele, e que ela tinha adivinhado. Emocionada, ela falou: " Sei que não é igual ao da Dona Dulce, mas estou aqui." E me abriu os braços. Eu me escondi ali, naquele cadinho de afeto, e chorei. O perfume dela ficou em mim. Ela havia acabado de chegar da missa e durante o sermão, o padre disse que um abraço sincero é muito mais valioso do que um carro zero. Fiquei feliz por receber aquele presente. Depois, enquanto preparava o almoço, conversando com o menino, fui lembrando a herança que mamãe me deixou. Além da tira, que é um décimo da casa velha, com janela azul de tramela, herdei muitas outras coisas, mais valiosas, até. Com Dona Dulce aprendi a pôr reparo no miúdo, no pequeno, nas coisas desimportantes. Foi com ela que aprendi a viver dentro do orçamento, a gastar menos do que se ganha; e que, independente se pouco ou muito, fazer uma reserva é essencial; Com ela também aprendi que as coisas podem ser recicladas e que é possível viver com pouco, muito pouco. Ela me ensinou também que, se você deseja uma coisa, o seu querer tem que ser gigante, para não desistir diante das dificuldades que certamente virão. Dona Dulce também me ensinou que quando colocamos 'bistaques" [ela não conseguia falar obstáculo] nas coisas, é preciso avaliar bem, se no fundo, no fundo, não são desculpas simplesmente para uma falta de desejo. Foi ela - antes até do que as teorias feministas - quem me ensinou que o amor romântico é uma bobagem, que é preciso ser independente emocional e financeiramente, e que é possível viver bem e em paz, mesmo sozinha. Gratidão, Dona Dulce!

domingo, 7 de maio de 2017

Terceira margem

É tão difícil pra mim passar o final de semana em BH. Fico buscando compreender a minha ligação com Baldim. Não é somente pelo lugar, porque lá, praticamente não saio de casa. Será a casa velha? Os passarinhos? As plantas no quintal? Os cachorros? A janela azul? O morro? A Ave-Maria na hora do Ângelus? As notas de utilidade pública lidas pelo Zé da Bilinha no alto-falante da igreja? A risada de Dona Geralda descendo a rua a caminho da missa? O trajeto da minha caminhada pelo cerrado? As vozes do coro da igreja na missa de domingo? O que será que me liga assim à minha patriazinha? Daí, fico pensando que Baldim é quase que um lugar existencial pra mim. É a canoinha onde entro e não quero mais sair. É minha terceira margem. E sigo "rio abaixo, rio a fora, rio a dentro", porque a terceira margem não se alcança, mas é ela que nos move a remar

Dilúvio de solidão

Tem um vídeo do Criolo no youtube gravado em dezembro de 2011 e disponibilizado em maio de 2012 (https://www.youtube.com/watch?v=9OlOUoHxbU0). Nele, Criolo está em um apartamento [? parece] em algum lugar de São Paulo. Ele diz que é a casa do [produtor] Rica [Amabis] que o está hospedando enquanto ele não tem um lugar para morar. Em um outro vídeo, cerca de 1 ano depois, Criolo canta "Casa de Mãe" [ó, um samba, mas ele não é rapper?] e diz que só aos 36 anos conseguiu realizar o sonho da casa própria (https://www.youtube.com/watch?v=vqjhJzgKhFQ). Guias azuis e brancas sob a camiseta da Cooperifa, do amigo Sérgio Vaz. ["Você quer brisa? Vai escutar poesia. Toda quarta-feira ainda tem Cooperifa], na pia da cozinha, Criolo lava uma taça enquanto canta um samba:
"Chove lá fora chuva de saudade demora
Nostalgia é guarda-chuva desse irmão
E para-raio é o pobre violão
Chove dentro de mim dilúvio de solidão
Angústia que faz sofrer
Pois boemia é pra poucos
Cachaça é água que acaba com o caboclo."
Criolo cita, um a um, xs amigx que já o hospedaram, pois o Grajaú, lugar da casa dos pais, Seo Cleon e Dona Vilani, onde sempre teve um quarto e uma cama à sua espera, fica no extremo sul da cidade de SP. Nesta época, Criolo começava a ficar conhecido depois de gravar o álbum "Nó na orelha". Ficar conhecido é modo de dizer, porque na cena Hip Hop, principalmente da quebrada, ele sempre foi conhecido.
Nos comentários do vídeo no youtube, várixs fãs questionaram estes anos todos, a autoria do samba. Eu mesma fui uma que pesquisei durante todo esse tempo, sem nenhuma pista.
Na madrugada da última quinta para sexta-feira, Criolo disponibilizou novo álbum na internet, desta vez só com sambas. E deliciosa surpresa foi ouvir na segunda faixa, "Dilúvio de solidão". 6 anos depois. Imagino que ele pode ter sido escrito muito antes. Engana-se quem pensa que Criolo faz samba só agora. Criolo faz canção. E faz canção desde sempre. 
Evoé, Criolo Doido!
Bom domingo pr'ocês ao som de Criolo!
Aqui o link para o novo álbum (https://www.youtube.com/watch?v=e193_zPMWy4)

"O dia que o morro descer e não for carnaval"

Quando eu tinha cerca de 18 anos, li um livro que me impactou profundamente: "Exílio na Ilha Grande", do André Torres. Este livro foi uma lente importante para eu enxergar as mazelas sociais. O livro me impactou tanto, que lembro até hoje de uma das frases lida logo nas primeiras páginas: "Como não ser violento quando temos toda uma agressão social que nos mata por dentro? O ser humano cria defesa e essa é uma delas". Era mais ou menos assim. André era assaltante de banco, branco e de "boa aparência". Dizia que pegava de volta o que havia lhe roubado. Roubava boutiques e carros de luxo e como era branco, nunca era considerado suspeito. Ele fala disso no livro. Foi preso e fugiu várias vezes e como tinha uma consciência política muito grande, era tratado como preso político. Lembro que em uma das fugas da Ilha Grande, ele narra a preocupação em carregar a escova de dentes. Ele tinha um cuidado muito grande com a aparência física, pois sabia o quanto a sociedade valoriza isso. Foi esse livro que me despertou para as Ciências Sociais, juntamente com "Tortura Nunca Mais" de Dom Helder Câmara, "Cavaleiro da Esperança" sobre Luís Carlos Prestes, de Jorge Amado, "Rosa, a Vermelha", sobre Rosa de Luxemburgo, "Corredor Polonês" sobre os países do leste europeu. Ainda tenho alguns desses livros comigo, edições de capa dura do antigo "Círculo do Livro", um clube de leitores onde você se associava e era obrigada a comprar. Eu sempre adorei essa obrigação. Isso foi bem antes da Universidade, onde entrei tardiamente. Mas esses livros foram fundamentais na minha formação política. Ainda tenho "O que é o capitalismo", "O que é o socialismo", "O que é o comunismo", "O que é o corpo", da coleção Primeiros Passos. Li, ainda no ensino médio. Tinha fome de saber. São questões que me perseguem há muito tempo e que esses tempos brutos têm trazido à tona essas lembranças. Na sexta-feira durante a manifestação, eu pensava em como somos ingênuos. Vamos para um possível confronto, que sempre pode acontecer, sem nenhuma preocupação de nos protegermos. Na sexta-feira, enquanto ouvia as as pessoas discursarem no carro de som, lembrei do clip do Racionais MC's sobre o Marighella. A música foi encomendada para o documentário de mesmo nome, lançado, acho, que em 2013. No Clip, os 4 pretos mais perigosos do Brasil reproduzem a ocupação que Mariguella fez na Rádio Nacional, em 1967. Ele ocupou a rádio e leu seu manifesto, duas vezes. Ontem, assisti o programa "Provocações" do Abujamra [que falta ele faz] onde ele entrevista a guerrilheira Clara Charf, que foi casada com Mariguella. Que mulher, minha gente! Que mulher! Depois de ouvi-la fui ler o "Mini-manual do guerrilheiro urbano" escrito pelo Mariguella onde ele fala da necessidade de preparação física, de conhecer bem seu inimigo, de construir estratégia. Ontem, enquanto via o vídeo da polícia militar atirando bombas no RJ, enquanto manifestantes gritavam para a PM parar, cheguei a ficar constrangida com tamanha ingenuidade. A esquerda-branca-classe média precisa subir o morro e ver como que é na quebrada. Quem pede para a PM parar nunca foi enquadrado, nunca tentou argumentar com um PM durante uma abordagem. Precisamos nos convencer que estamos em guerra. Precisamos ler sobre o Quilombo dos Palmares, sobre os Malês, aprender com Zumbi, com Luísa Mahin. A PM não é mal preparada, ela é preparada exatamente para fazer o que faz: proteger o capital. Precisamos sentar com os irmãos e irmãs do MTST e MST e aprender sobre ocupação e resistência. Como diz o poeta Pedro Pomba, "aqui, toda camisa branca é manchada de vermelho sangue e paz é uma palavra que não existe no vocabulário da rua". Por isso, eu sonho com o dia que as bombas que temos guardadas dentro de nós, explodam. Eu partilho com o mestre Wilson das Neves o sonho do dia em que o morro descer e não for carnaval:
"Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral, e cada uma ala da escola será uma quadrilha, a evolução já vai ser de guerrilha, e a alegoria um tremendo arsenal, o tema do enredo vai ser a cidade partida, no dia em que o couro comer na avenida, se o morro descer e não for carnaval. O povo virá de cortiço, alagado e favela mostrando a miséria sobre a passarela, sem a fantasia que sai no jornal, vai ser uma única escola, uma só bateria quem vai ser jurado? Ninguém gostaria, que desfile assim não vai ter nada igual. Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga nem autoridade que compre essa briga, ninguém sabe a força desse pessoal, melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria, senão todo mundo vai sambar no dia em que o morro descer e não for carnaval"

Um armário

É muito ruim ficar longe desses dois. Daí, eu lembro dele me dizendo: "Foca na prova, mãe! É o nosso futuro que tá em jogo." E penso que, a ponto de completar 51 anos, ainda não consegui proporcionar nem um armário, tipo casas bahia, para o menino guardar os trenzinhos dele. Ficamos os dois, juntos, sonhando com a nossa casa, que um dia virá, é certo que virá. Um quarto pra mim, outro pra ele, um lugar para os livros. Um pôster do 2 Pac na parede, um suporte para a guitarra, outro para o violão, um cantinho para meus santinhos pretos, para a pomba do divino, para jarrinha do Jequitinhonha. O comigo-ninguém-pode, a espada de São Jorge e o vasinho de arruda na entrada, uma casinha pra Fridoca, nossa cachorrinha banguela, resgatada da rua. Daí, lembro que o nosso exercício nos últimos 10 anos tem sido o desapego e lembro da fala do meu amigo cubano: "João tem muito, Dalva. Só que não são coisas materiais." Daí, procuro acalmar o meu coração, porque o que acumulamos nos últimos anos, realmente não cabe em malas, e as nossas estão cada vez mais leves!

O mundo dá voltas

Quando cheguei em casa na sexta à noite, fui recebidas pelos cachorros. Scooby, enlouquecido com a minha chegada, pulava tanto que me arranhou os braços, . Fridinha, dengosa, veio pro colo. O menino só vi mais tarde, quando chegou do rolê. Veio pro meu quarto porque eu já estava deitada e fomos passar a semana a limpo. Contei da prova do concurso que não passei. Ele me consolou e deu força: "Agora é continuar estudando e insistindo, mãe! Uma hora dá certo". Falei de outra inscrição, dessa vez para o interior do Piauí. Ele disse que não era o desejo dele, mas que, 'se rolar', vai junto porque sabe que estou sempre buscando o melhor para nós. Depois, deitou do meu lado e me mostrou, no celular, as descobertas musicais. Falou também, de um certo cansaço em ser enxergado como "exótico" numa cidade de 7 mil habitantes, por conta do cabelo e do skate; e de ser enxergado como da "roça" pelos amigos da metrópole, que insistem em ensiná-lo a usar a manete do playstation, como se ele não soubesse. Falou das falas e das posturas racistas, cotidianas, que acontece na escola. Falou das conversas que tem tido com as amigas negras e de como tem insistido com elas sobre a necessidade de se posicionarem e não aceitarem racismo e preconceito travestido de "brincadeiras. Falou que quem decide se é ofensa ou não, é quem se sentiu ofendido. Eu ainda me surpreendo, diariamente, com a postura madura desse menino que não para de crescer e não é só fisicamente. Uma ternura imensa tomou conta de mim e quando o sono chegou, pedi a ele que ficasse deitado, ali, do meu lado, até eu dormir. Ele me abraçou, riu e disse: "Como o mundo da voltas, hein, mãe? Até outro dia eu queria dormir com você e você não deixava." Fiquei quietinha, vivendo aquela horinha de descuido e lembrando de tudo que passamos até chegar aqui. Ele, achando que eu já tinha dormido, saiu pé ante pé e fechou a porta do quarto.