sábado, 27 de agosto de 2016

Eu também não sei o que fazer


Não acordei boa, não. Como o menino dormiu na casa do pai, pude chorar, como diz Adélia, como bezerro desmamado, meu fundo desvalimento. Não precisei chorar escondido, pois como diz a poeta, quando os meninos têm lá o medozinho deles é atrás de nós, que somos grandes, que eles correm, pensando que somos fortes.Não sabem de nada, inocentes...

Acordei com a música "Dez Anjos" do Criolo na cabeça. "Dez Anjos" foi encomenda de Gal Costa a Milton e Criolo. A melodia, inconfundível é de Milton e a letra, ácida, é a marca do Criolo:

"Tanto barro pra amassar
Na sacola, uma ilusão
Na cabeça, um querer
Arma e ódio na mão
Sete chaves para abrir
Sete portas, meu irmão
Odisséia sem Uli
Biqueira, viela e pão".

Numa noite dessas, nas bordas da metrópole, Criolo explicou a letra no "Sarau do Binho". O barro para amassar era o chão do barraco que tinha que ser comprimido para não desmanchar em dias de chuva. A sacola era ele e o pai indo fazer a feira no caminhão da Cobal.


Olha, a minha vida musical se divide antes e depois que descobri o Rap. Criolo fala demais ao meu coração. Sei bem o que é pegar a sacola e caminhar alguns quilômetros, a pé, para ir até o sacolão mais barato. Sei o que é sua mãe plantar flores e verduras no barranco para que ele não desmanche em dias de chuva. E confesso, tô com muito medo desse tempo voltar.

"Só água na geladeira e eu querendo salvar o mundo", canta o outro rapper que eu adoro, Emicida. É isso que esse golpe ressuscita em mim. Um pavor do vivido em anos recentes. 

 "O gostoso do inverno é fazer rolê sem passar frio, tio". Sabe o que é isso? Não ter um casaco quentinho para as noites de inverno? Nunca vi charme no inverno. Tenho horror a frio, até hoje.

Como a mulher do poema de Adélia eu também não posso ir pro convento, pois gente com filhos não pode. Como ela, também não quero tapar os ouvidos, que é covardia. De morrer, eu também não gosto. E, francamente eu também não sei o que fazer, eu não sei mesmo.

sábado, 20 de agosto de 2016

Vai pra Cuba!

"Muita religião, seu moço!": os caminhos de uma congadeira", é o título da minha tese de doutorado, defendida em fevereiro deste ano. Em novembro terei a oportunidade de apresentar o resultado dessa pesquisa num simpósio internacional de antropologia, em Cuba. Estou levantando os recursos de forma colaborativa. Para isso, criei uma vaquinha virtual. Se você puder contribuir ficarei muito agradecida, se não, compartilhe com alguém que você acha que pode se sensibilizar com a causa.

Aqui, o link para a vaquinha virtual:
 https://www.vakinha.com.br/vaquinha/vai-pra-cuba-dalva


sábado, 13 de agosto de 2016

A carne mais barata do mercado

Eu não nasci negra. Me tornei negra. Foi lá pelos 26 anos, quando entrei na universidade. É, entrei tardiamente... Lembro de quando a ficha caiu. Foi na disciplina "antropologia do negro brasileiro" no curso de Ciências Sociais. Lembro também das inúmeras discussões que provoquei em casa, quando levantava a questão racial. Somos 10 irmãos e acredito que só 5, depois de sofrerem muitas, mas muitas situações de racismo, se reconhecem como negros. Ano passado descobri que a minha tataravó recebeu um pedaço de terra quando foi alforriada. Como gostaria de saber mais sobre meus antepassados: como chegaram aqui, no interior das gerais, de onde vieram, de qual país. Mas, nós negros não tivemos esse direito. Nossas histórias foram invisibilizadas, os documentos da escravidão foram queimados. Muito provavelmente, meu sobrenome Soares, vem do senhor de escravos, proprietário da minha tataravó. Na semana que passou, dois sobrinhos meus viveram situações de racismo. Um, de apenas 10 anos, está se descobrindo negro, sentindo na pele, da forma mais dolorosa possível, o que é ser negro. O outro, de 28 anos, já percebeu há algum tempo. Fiquei muito emocionada, porque este sobrinho de 28 anos é muito calado. O máximo que conversávamos era quando ele me pedia a bênção. "Bênção, tia!", e me estendia a mão. É assim todas as vezes que nos encontramos. Assim foi criado. Eu, agnóstica, meio constrangida, seguro firme em sua mão, firmo meu pensamento e desejo do meu mais profundo ser que os deuses e deusas ou a força que existir no Universo o proteja e com uma certa dificuldade, respondo: deus te abençoe. Já trocamos alguma informação sobre rap, e só! No domingo, penso que pela primeira vez, tivemos uma conversa longa. Conversamos sobre racismo. Ele compartilhou uma situação que viveu, falou da raiva e da impotência que sentiu e de como, na maioria das vezes, não sabe como agir. Eu disse a ele que precisamos nos fortalecer e construir argumentos para a nossa luta diária. Fiquei pensando nos meus vários sobrinhxs que já se perceberam como "não-brancos", mas que ainda não se enxergam como negros e como vai ser dolorosa essa constatação. Na madrugada de domingo mais cinco jovens negros foram assassinados pela polícia. Não vi comoção na minha TL. Percebo que muitxs amigxs que tenho por aqui e que curtem minhas postagens, não se manifestam quando elas são relacionadas à questão racial e ao racismo. Muitos amigxs progressistas, de esquerda, sensíveis à causa das mulheres, da comunidade lgbt, aos direitos humanos, à questão ambiental, mas que não se manifestam quando o assunto é racismo. Como eu gostaria de ver essxs amigxs engajados nessa luta, de mãos dadas com a gente, engrossando e fortalecendo o front. Eu entendo que é difícil perceber quando não se vive na pele. Mas é estranho, parece que até a palavra as pessoas têm medo de falar, é sempre preconceito, discriminação e nunca racismo. Eu não consigo parar de pensar nos meninos mortos pela polícia. Tenho filho negro e essa angústia dele ser um "potencial suspeito" porque é negro, porque usa o cabelo black power, me acompanha diariamente. Todos os dias converso com ele sobre as abordagens policiais que virão, mais cedo ou mais tarde. Penso que o problema mais urgente no país é o racismo e enquanto não o enfrentarmos, continuaremos assistindo ao extermínio da juventude negra. Cerca de 82 jovens são assassinados todos os dias no Brasil. 77% deles são negros. Mata-se mais aqui, do que nas zonas de guerra. Mas essas mortes não comovem. Como disse o Emicida, não vi ninguém trocar a foto de perfil, nem nenhuma hastag ‪#‎somostodos‬...A carne mais barata do mercado, ainda é a carne negra.
Roberto de Souza Penha: 16 anos;
Carlos Eduardo da Silva de Souza: 16 anos;
Cleiton Correa de Souza; 18 anos;
Wilton Esteves Domingos Junior: 20 anos
Wesley Castro Rodrigues, 25 anos. Estes são cinco dos cerca de 80 jovens que foram assassinados no domingo. Eles têm nome, família, tinham sonhos, desejos e tiveram suas vidas interrompidas por este Estado racista e assassino.
Bom dia pra você, se você conseguir. Eu sigo aqui, com um bolo no estômago, pensando nas mães e pais que enterraram os seus filhos ontem.

Baldim, 01 de dezembro de 2015

Solidão e compaixão

Há dias um conto não me sai da cabeça: "Sorôco, sua mãe, sua filha", de Guimarães Rosa, outro santo de minha devoção.
O cenário é uma estação de trem. O famoso trem que levava os "loucos" para Barbacena.
Outro mineiro já cantou sobre a estação, mas esta, a do conto, só tinha um lado da viagem, o de ida. Talvez, por isso as pessoas falavam sem parar, para que as outras não percebessem a tristeza, "não queriam poder ficar se entristecendo" , cada um sabendo "a prática do acontecer das coisas".
Sorôco era viúvo, a mãe de idade, a filha, "só tinha aquela" sem mais nenhum parente. Era um "homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiósa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas". Vinha de braços dados com mãe e filha. A filha cantava, errado no tom e nas palavras, a mãe batia a cabeça. O povo evitava olhar, para não deixar Sorôco constrangido, "não parecer pouco caso". Pra despedida, Sorôco calçou botinas, vestiu paletó, na cabeça chapéu grande, no corpo "roupa melhor".
O povo dizia que Sorôco tinha muita paciência, que não ia sentir falta das "pobrezinhas" essas "transtornadas" ia ser até "um alívio". Sorôco aguentou os anos todos pelejando com as duas, mas com o tempo elas pioraram, ele não dava mais conta, precisou de ajuda.
"Ela não faz nada", Sorôco explicou ao agente do trem. A mãe, em silêncio olhou para o filho, já em pressentimento do que viria, e o que se viu em seus olhos foi só "um amor extremoso". A velha juntou com a filha e agora, as duas cantavam juntas a cantiga que ninguém entendia, mas que provocava nas gentes uma arcorçôo que chegava a doer. Todo mundo desejando que aquilo acabasse logo.
"O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre. Sorôco, de chapéu na mão, embargando de poder falar algumas palavras". Imagino que somente em seu interior disse: "bença, mãe"; "deus lhe ponha a bênção minha filha"; vão com deus! Sem queixa, aguentou firme o peso do corpo e do mundo que desabava sobre ele, "exemploso". Toda a gente se compadeceu da dor de Sorôco e de repente "gostavam dele demais".
Sorôco se sacudiu e virou-se para ir embora. Estava voltando para casa, "como se estivesse indo pra longe", "se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser." E num "rompido" parou e começou a cantar "alteado, forte, mas sozinho pra si", a mesma cantiga que as duas cantavam. E foi, "sem combinação", que toda a gente, "de dó do Sorôco" começaram a cantar também aquela cantiga sem razão. Cantaram alto, caminhando com ele, indo até "aonde ia aquela cantiga".
Pra mim, muito mais do que loucura, esse conto fala é de solidão e compaixão.

Heroínas e heróis

Hoje, enquanto tomava café, antes de ir pra escola, mostrei para o menino a nova música do GOG & Projeto Nave: "Heroínas e heróis": "Minhas heroínas resistiram, todas estão vivas, mesmo as que partiram pela obra estão ativas, ou você acredita numa Dandara derrotada?" Aqualtune, mães da Candelária, Acari, Praça de maio, Dona Neca, Lélia Gonzáles, Makota Valdina, Vilma Reis, Guerreira Sabina, Rainha N'Zinga, Joelma, Dindinha, Dona Martinha, Rigoberta, Selma do Coco, Frida, Clementina, Carolina de Jesus. "Meus heróis estão vivos, mesmo os que partiram pela obra estão ativos ou você acredita que Zumbi foi derrotado?" Antônio Conselheiro, rebelados farrapos, Revolução dos Alfaiates, Sacco, Vanzetti, Carlos Moore. "Nossos livros, nossa vida, nossa escola, guerra preta, estratégia quilombola. DJ's falam pelos discos, MC's pelos escritos, relatos, rap, samba enredo." Enquanto comia o último pedaço da tapioca, ele lembrou de uma fala do herói imortal do filme "Uma história de amor e fúria" , que ele adora e vive repetindo: "meus heróis não viraram estátua, morreram lutando contra quem virou". O menino terminou seu café, escovou os dentes e seguiu pra escola. Hoje ele tem prova de história, da Europa, sobre o "império napoleônico" (bloqueio continental, batalha de waterloo, santa aliança, congresso de viena).

Capim meloso

deitada no chão do alpendre ela sentia a friagem do cimento atravessar o tecido do vestido e abrandar o calor daquela tarde. nem parecia que ainda estavam no inverno. o vento do final de agosto balançava o capim meloso que cobria todo o morro, em frente. o movimento do capim ao vento dava a impressão de milhares de bichinhos peludos descendo correndo da estrada até o córrego.

baldim, 22 agosto, 2015.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Entre a determinação e a resignação

Os bichos humanizam a gente. Fato! Vai completar 1 ano que adotei Fridinha. Aquela cachorrinha minúscula vivia pela rua, sendo escurraçada por todos, mas atenta a algum sinal de afeto onde pudesse se arranchar. Meu coração cortava de dó. Nos dias de chuva então, lembrava dela. Comecei colocando água e ração do lado de fora do portão, mas não deixava ela entrar. Mas, era fatal! Quando sentia algum cheiro estranho, era só procurar que ela estava por perto. Encontrei Fridinha muitas vezes escondida no banheiro, embaixo da cama, dentro da minha caixa de livros. Às vezes, fingia que não a via, só para não ter que expulsá-la. Até que um dia, criei coragem, chamei o menino e demos um banho nela. Era tanta pulga que tive que enfrentar o meu nojinho. Tensa, ela ficou quietinha enquanto cuidávamos dela retirando os parasitas. Precisou de muitos banhos para retirar toda a crosta de sujeira que havia em seu pelo. Nunca mais foi embora. Depois compreendi que pulgas, carrapatos, o cocô pelo quintal, é o de menos. Foda é quando eles se machucam, adoecem, brigam na rua. Dias desses, Scooby voltou sem um pedaço da orelha. Que ódio que fiquei dele, por caçar confusão na rua, brigar com cachorro maior e mais safo do que ele. Enquanto tratava do ferimento, brava, xingava ele, como se resolver, fosse. Scooby é determinado, quando quer uma coisa não dá sossego, até conseguir. Aprendeu a abrir o portão e vai e volta da rua quando quer. Fridinha, não. A pequena é obediente, não sai de casa, sempre perto de mim. Não sei sua idade e ela demorou um pouco a atender pelo novo nome. Imagino que seja velhinha, pois não tem todos os dentes e fica sempre, muito quietinha. Mas, tem um característica em Fridinha que me chama a atenção. Ela é resignada. Fica sempre por ali à espera de um ossinho ou de uma sobra do prato, que se não vem, ela vai logo pro cantinho dela, conformada. Scooby, não! Acabou de latir, informando que a ração que coloquei pra ele foi pouca e que quer mais. Se o portão está trancado e ele não consegue abrir, é cada voadora que dá em mim. Enquanto não faço a sua vontade, ele não desiste e eu não tenho sossego.
Com a consolidação do golpe, meus sentimentos têm se dividido entre a determinação do Scooby e a resignação de Fridinha. Resignar é um troço ruim demais. Lembro dessa resignação nas décadas de 80 e 90 com o país vivendo a fome, a inflação e o desemprego. Não era inflação de 10% ao mês, não! Era de 100%. Lembro da manchete do jornal "O Estado de SP", em dezembro de 1989: "inflação do ano atinge 1.764, 86%. Isso mesmo! 1.764, 86%. Pensem no que foi isso! Pensem nisso para quem recebia salário mínimo. Hoje, o problema não é Temer, nem Cunha, eles são instrumentos de uma classe dominante, como dizia Darcy Ribeiro (que saudades...) "ruim, ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente." Descendentes dos senhores de escravos essa elite traz na alma o chicote, "condicionado a usar o povo como carvão que se queima para a produção, para ter mais lucro".
Eu fico entre a determinação do Scooby, com um desejo de ainda lutar e a resignação de Fridinha, como uma defesa, uma couraça para não sofrer diante da impotência dos destinos do país. Nossos cartazinhos "Fora Temer" não adiantam de nada. Nem nossos memes criativos. Os golpistas devem estar rindo de nós. Sinceramente, eu não sei o que fazer. Tô como diz Adélia, com medo de apanhar tristeza, de encardir de melancolia. Não há líderes nem estadistas que nos deem a resposta, alguém que nos diga o que fazer. A esquerda briga entre si. Como li, agora a pouco, nem sei mais onde, falta foco. Ficamos criticando joguinhos de celular, se o correto é presidente ou presidenta, enquanto os golpistas arrasam com o país.
Como diz o poeta: "o anzol da direita fez a esquerda virar peixe", infelizmente!
Que os orixás e as almas benditas tenham piedade de nós. Vou ali, ler um poema e reforçar minha couraça, para não cair em melancolia. Se decidirem invadir o congresso, explodir Brasília ou fugir para as montanhas, me chamem, por favor!

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Autoestima



"sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações."

(primo basílio, eça de queiroz)

"Um passo a frente e você não está mais no mesmo lugar"



 "Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Aquele sinal com a faixa de pedestres e o homem esperando para atravessar com um guarda-chuva transparente e um cachorro de capa amarela." Adriana Lisboa









Alvorada

Acordo às 5h da manhã com o toque dos sinos, seguido de banda de música e foguetório. É a alvorada festiva. Começou a festa de agosto, festa do padroeiro. Em seguida, ouço os tambores da guarda de Congo. Mesmo sendo uma mulher de pouca fé, fico comovida com a devoção do outro. Scooby e Fridinha ficam enlouquecidos com os fogos. Levanto e abro a porta pra eles entrarem. Volto pra cama e fico ouvindo o "grande movimento". Cerca de 1 hora depois, ainda estou entretida com os sons que chegam da rua. Esqueço de chamar o menino que acorda sozinho e, estranhando o silêncio, grita do quarto: "mãe, tá passando mal?" "Não, tô só quietinha". Ele se apronta pra escola e no ritual diário, repete a frase: "Mãe, me leva até o portão?" O acompanho e me despeço: "Boa aula, filho!" Ligo o computador e o choque de realidade! Já ando confusa sobre a matrix. Às vezes o mundo real é menos pesado que o virtual. Onde me alieno? Na conversa com a vizinha, que segue alheia ao golpe, ou nas tretas do facebook? O celular anuncia uma notificação. É uma pílula de afeto que chegou, via whatsapp. A amiga de SP lendo Júlio Cortázar pra mim e me convencendo que nos crespos da vida existe sempre uma alegriazinha escondida. Ouço comovida o excerto numa voz doce de alguém que não conheço pessoalmente, mas que já gosto tanto. Um outro mundo é possível, sim! Que, apesar das horas brutas, você encontre a sua alegriazinha, hoje. É o que lhe desejo. Porque é o afeto que nos salva.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O mundo dá voltas

Apressei o passo para aproveitar o sinal aberto para pedestres e me enfiei no meio dos estudantes. Lembrei do meu primeiro dia como aluna da UFMG. Naquele início de março de 1991, eu seguia em direção à FAFICH, ainda meio incrédula e ia pensando: "eu passei no vestibular. vou estudar na UFMG!" E uma alegriazinha tomava conta de mim. Duas outras irmãs, uma mais velha e outra mais nova que eu, formariam naquele ano. A UFMG foi meu segundo choque cultural. O primeiro foi o contato com a metrópole, depois de mudar de uma cidadezinha de 7 mil habitantes.
Ontem, enquanto caminhava em direção à FaE, ia lembrando do tanto que circulei por aquele campus. Sempre correndo pra lá e pra cá, pois tinha que estudar e trabalhar.
Nos fones de ouvido, Jaloo cantava "Last Dance" pra mim, mas senti que o momento pedia algo mais forte e selecionei "Mandume", do Emicida. Primeiro o refrão:
"Eles querem que alguém
Que vem de onde nóiz vem
Seja mais humilde, baixa a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se fodas!"
Depois, Drik Barbosa, uma das muitas rappers pretas empoderadas dos últimos tempos, continuou:
"Sou Tempestade, mas entrei na mente tipo Jean Grey
"Xinguei,
quem diz que mina não pode ser sensei?
Jinguei,
sim sei, desde a Santa Cruz, playboys
Deixei em choque, tipo Racionais, "Hey Boy! "
Tanta ofensa, luta intensa nega a minha presença
Chega!
Sou voz das nega que integra resistência
Truta rima a conduta, surta, escuta, vai vendo
Tempo das mulher fruta, eu vim menina veneno
Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não raia
Basta de Globeleza, firmeza? Mó faia!
Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia
Devasta esses otário, tipo calendário Maia
Feminismo das preta bate forte, mó treta
Tanto que hoje cês vão sair com medo de buceta
Drik Barbosa, não se esqueça
Se os outros é de tirar o chapéu, nóiz é de arrancar cabeça."
Mandume é para mim, uma das músicas mais fodas de 2016.
Quando atravessei a porta da Faculdade de Educação, pensei que era chegada a hora de solucionar um caso de amor mal resolvido. Tentei por 3 anos consecutivos passar no mestrado na FaE e fui reprovada nas três tentativas. Cheguei a tirar 100 na prova de línguas e 98 na prova escrita e ser reprovada na entrevista. Amarguei essa frustração por quase 10 anos. Mas, agora eu voltava, não como aluna, mas como professora. Preciso confessar que sentir uma satisfaçãozinha com um certo gosto de revanche. hahaha
Mas o desafio é gigante! Substituir um professor referência em educação, estudioso das juventudes, além de ser um ser humano incrível. Enquanto andava com ele pelo departamento, ia observando como ele trata as pessoas. Pessoa mais amorosa e gentil nunca vi. Trata a tiazinha da limpeza com o mesmo carinho e atenção que o colega doutor.
E a turma? Que turma é aquela? O corpo não consegue aprisionar o sentimento e eu vi nos olhinhos delxs a tristeza com a saída do professor foduço que elxs têm, mas uma alegria contida com a novidade da minha chegada. Uma aluna, inclusive, falou da minha presença ali, e de quanto este fato significava representatividade. Eu me emocionei muito com a recepção dxs meninxs. Cada fala mais fofa que a outra.
Fiquei observando como a Universidade está muito mais preta do que na minha época de graduação. Na verdade ela está muito mais diversa, mais colorida, mais inclusiva. E os alunx apreensivos com o que estar por vir.
Enquanto lia os trabalhos delxs ia percebendo a importância de programas como o Ciência sem Fronteira, o PIBID, entre outros. Todos comentavam da importância do intercâmbio, do tanto que abriu a cabeça delxs, e do desejo de enfrentar uma sala de aula, nascido depois de viverem a experiência do PIBID.
O Brasil não merece o golpe que está se consolidando. Como li por aí, ontem, será que vamos assistir a tudo bestializados, atônitos como escreveu José Murilo de Carvalho a respeito da proclamação da república?

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A casa

O som das patas do Scooby na porta me despertou do sonho. É um sonho recorrente: não tenho casa e alguém me acolhe. Há anos sonho isso. Na última semana sonhei umas três vezes. Esta noite, era uma casa grande, dois pavimentos, espaçosa. Uma sala comprida, conjugada com uma cozinha, dessas em estilo americano. Uma escada levava a um segundo andar. O quarto onde eu estava tinha duas camas de solteiro e um armário que achei ser muito parecido com o que o menino sonha para guardar seus tremzinhos. Tudo estava muito arrumado. Era uma casa sem marcas. Mais parecia um cenário e não um lugar habitado por gente que deixa suas marcas por onde passa: paredes com marcas de mãozinha de criança, sofá rasgado, louça lascada, madeira da janela gasta pelo sol e pela chuva.
Lembrei de um post que vi, há alguns anos, no blog do Alexandre Vidal Porto. Alexandre, além de escritor é diplomata e vive pelo mundo à fora. Neste post ele arrumava as malas para mais uma mudança. Se não me falha a memória ele estava indo morar no Japão. E ele citava um trecho de um livro da Adriana Lisboa. Fui atrás da Adriana e achei o blog dela, onde ela também falava sobre estar sempre mudando. Em um dos posts ela citava Vilém Flusser, filósofo judeu, nascido em Praga, que morou também no Brasil, na Itália, na França. Diz ele:
“Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. O homem é estrangeiro no mundo.”
Foi com a Adriana Lisboa que aprendi que as malas precisam estar sempre leves.
Daí, lembrei de um poema da Lya Luft:
"Uma casa deve ter varandas para sonhar, cantos para chorar,
quartos para os segredos e a ambivalência."
Lembrei, também, da poeta Sophia de Mello Breyner. Quando ela mudou-se da cidade do Porto para Lisboa, já cansada de procurar um lugar para morar, ouviu da mãe que uma casa tem que ser boa por dentro e não por fora. Ela respondeu que não, que ela precisava de janela, pois uma casa precisa ter vista. A vista dela dava para o Rio Tejo.
É a vista que nos mantém conectados com o mundo. Quando eu morei em Florianópolis e os aviões passavam a caminho do aeroporto, baixinhos, já bem próximos dos nossos telhados no Campeche, além do medo que eu sentia deles caírem em cima da nossa casa, eles me lembravam, diariamente, do muito que ainda tinha pra conhecer.
Adélia também fala de casas, existentes não em bairros ou em ruas que se conhecem, mas num modo tristonhos de certos entardeceres. Casas infensas à demolição. Talvez por isso meu sonho recorrente.
Ontem, no apagar das luzes para dormir, depois de caçar muito pokemon, o menino pegou um livro pra ler. Mal começou a ler e veio me mostrar a epígrafe do capítulo, que, segundo ele, era a minha cara:
"Para mim, em minha pobreza, minha biblioteca bastava-me como ducado." William Shakespeare, em A Tempestade.
Aproveitei e falei pra ele de José Luis Borges, que dizia imaginar o paraíso como uma espécie de biblioteca.
Lembrei também de um dia, no comboio, em Lisboa, quando ele dividiu comigo os fones de ouvido para que eu escutasse um trecho de uma música do Rappa, que, segundo ele, também, era a minha cara:
"Te mostro um trecho, uma passagem de um livro antigo
Pra te provar e mostrar que a vida é linda
Dura, sofrida, carente em qualquer continente
Mas boa de se viver em qualquer lugar.
Sigamos, então, lembrando da minha amiga, Silvana Rodrigues, que me ensinou que quando falamos da nossa pobreza, na verdade, é da nossa riqueza que estamos falando. O que acumulamos nos últimos anos não se carrega em malas, por isso as nossas estão cada vez mais leves.
Lembro, também, do Criolo dizendo, que só há pouco tempo, conseguiu um cantinho pra morar e coloco a sua música para ouvir:
"Eu não tenho casa
Eu moro em casa de mãe
Casa de mãe é bom
Mas é casa de mãe
(...)
Um dia vou ter minha casa
E vai ser a coisa mais linda
Com gravuras de Oxossi, Ogum e Mãe Menininha.

sábado, 6 de agosto de 2016

Tem alguma coisa muito errada

Ao contrário de mim, que sempre confesso tudo, me expondo em demasia, o menino é reservado. Ouve muito mais do que fala. Pequenininho já me proibia: "mãe, eu não quero que você fale da minha vida pessoal com seus alunos". Eu ria: "você lá sabe o que é vida pessoal?" E ele me olhava atravessado, a cada vez que encontrávamos com algum alunx na rua, que sempre dizia: "este que é o famoso João Pedro?" Denunciando que já tinha ouvido muita história a respeito do menino. Ele só levantava a cabecinha em minha direção, como a dizer: "Mãe, você não tem jeito, hein?" E eu sempre contando alguma coisa sobre ele, alguma fala surpreendente para a pouca idade. Por volta dos 9 anos, sentado na bancada, na kitinet onde morávamos, em Florianópolis, sem parar a tarefa da escola que estava fazendo, ele disse: "mãe, hoje um gurizinho me chamou de negro na escola." Rapidamente formou um bolo no meu estômago e antes que ele se desfizesse, ele acrescentou: "e eu respondi: "sou negro sim, com muito orgulho!". Eu, coruja assumida que sou, não consegui segurar o choro. Ser negro nunca foi problema pra ele. Ao contrário de mim, que me descobri negra, só quando entrei na universidade. A luta contra o racismo é diária e às vezes dá um cansaço... Principalmente quando ouvimos que não somos negros, que nossa pele é clara, blá, blá, blá... É preciso muita conversa para construirmos juntos os argumentos que precisam ser repetidos, diariamente. Ontem, foi mais um dia de conversas difíceis. Eu, no computador, terminando a leitura de um texto; ele, lavando a louça do jantar. Ouvi sua voz atrás de mim, daquele jeito sério, quando ele vai falar coisa, depois que refletiu bastante: "mãe, tem alguma coisa muito errada com um país onde as mães negras só respiram aliviada depois que seus filhos chegam em casa". Ele disse isso, porque até aqui, em Baldim, um cidade com cerca de 7 mil habitantes, contanto os distritos, a cada vez que ele sai para dar um rolé de skate. eu tenho medo dele levar um enquadro da polícia. E ele continuou: "tem alguma coisa muito errada com um país que coloca uma modelo branca para ser assaltada por um moleque negro, numa abertura de olimpíada. Tem alguma coisa muito errada com um país, onde um pacote de pipoca é confundido com uma arma e a polícia mata um menino na porta de casa." Eu engoli em seco, aquele bolo no estômago se formou e continuo com ele até agora. E ele vai brigar comigo porque, mais uma vez eu publicizei sua "vida pessoal". Mas, penso que é necessário refletirmos sobre isso. Precisamos fortalecer a autoestima de nossas crianças negras e construirmos juntos com elas argumentos para combatermos o racismo nosso de cada dia.

"Capítulo 4, versículo 3"

- Mãe, tenho que fazer um trabalho pra escola e escolhi falar sobre preconceito racial e racismo. Quero falar sobre aquele lance que 77% dos jovens assassinados todos os anos são negros. Você me ajuda?
Pensa num orgulho de mãe. Pensou?
- Mãe, põe aí pra rolar aquela música dos Racionais: "aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente."
E o trecho de "capítulo 4, versículo 3" virou epígrafe do trabalho:
"60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas 2 por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo"
O trabalho foi feito ao som de Mano Brown, Criolo e Emicida.
Ainda buscamos dados no site da Anistia Internacional e Racionais ficou rolando em loop...
"Todo dia é dia de preto"

"Descanso na loucura"

"Amizade dada é amor" e "qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura", já dizia o velho Guima.
Dizem que o facebook afasta as pessoas, mas comigo tem sido diferente. Conheci Ione Torres pela internet, em 2011, quando morava em Florianópolis. Ione criou um blog bacanérrimo sobre Baldim (http://baldimumdocedecidade.blogspot.com.br). Quando vi, mandei mensagem parabenizando e desde então, nunca mais paramos de nos falar. Anos atrás, cheguei de surpresa em sua casa e trocamos um abraço longo, emocionado.
As irmãs Lúcia e Jacinta, eu conhecia de vista, da infância, quando elas passavam em frente à casa do vovô, indo visitar Dona Teresa. Ficamos amigas de facebook, em 2014, durante a campanha para reeleição da Dilma e meses depois, fui convidada para um café delicioso em sua casa. Lúcia me mostrou cada cantinho e cada florzinha de seu jardim lindo e Jacinta fez com que eu engordasse uns 2 quilos, só com as gostosuras que preparou. Tudo caprichosamente arrumado numa mesa na varanda, forrada com uma bela toalha de crochê.
Também em 2011, fui apresentada à Luana, pelo facebook. E não é que nos encontramos, por acaso, num dia "não-qualquer" na UFMG? Nem não acreditei quando vi aquela moça caminhando em minha direção. Paramos uma em frente a outra e foi mais um abraço emocionado.
Ana também foi amor ao primeiro post. Emília, amiga em comum, se encarregou de uma tarde de guloseimas e patrocinou o encontro. Viramos amigas de infância.
Esta semana me chamaram no portão. Foi chegar lá e reconhecer a Elena, que também conhecia somente de facebook (me recuso a chamá-la de dona, pois deve ter a minha idade) . Obriguei-a a entrar, sentou na mesa comigo e coei um café pra nós. Até prometi ajuda, pois Elena tem um projeto lindo para recuperar nascentes. Olha só a boniteza! Fiquei de ajudá-la a conseguir as mudas de árvores nativas do cerrado.
Ainda aguardo, ansiosa, o dia em que darei um abraço na Angela, tomarei um café com o Fernando, uma cerveja com o Gleidston depois de assistirmos a um filme no Cine Belas Artes e lerei Grande Sertão: Veredas, na companhia do Genio e da Regina por esse Sertão dos Gerais.
E ainda tem o Marcos, a Shayla e um monte de gente bacana que espero, ansiosa, o dia de conhecer pessoalmente.